"na hora de pôr a mesa, éramos
cinco:
o meu pai, a minha mãe, as
minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais
velha
casou-se. depois, a minha irmã
mais nova
casou-se. depois, o meu pai
morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos
cinco,
menos a minha irmã mais velha
que está
na casa dela, menos a minha
irmã mais
nova que está na casa dela,
menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva.
cada um
deles é um lugar vazio nesta
mesa onde
como sozinho. mas irão estar
sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos
sempre cinco.
enquanto um de nós estiver
vivo, seremos
sempre cinco." José
Luís Peixoto in A Criança em Ruínas
"Limpo de tédio os meus olhos
para te receber,
ó primavera, e um dilúvio de
miosótis faz-me regressar
à estação das chuvas, ouvindo o
correr das águas
numa impaciência de estuário.
Lanço a pedra do outono
contra o anjo cego da
madrugada, e as suas asas
estendem-se sob as nuvens que
desceram até ao campo
onde a pastora se perdeu do
rebanho, e me pergunta
o caminho para a última
clareira do vale. Sento-me
ao seu lado, sob o freixo
antigo, e o vento convalescente
do temporal seca-lhe as
lágrimas, enquanto a dispo
da sua túnica de écloga, para
que o seu corpo beba
um licor de pétalas
adormecidas.
«Nestas encruzilhadas, o amor
virá ao vosso
encontro, ó amantes incertos!
Trará nas suas mãos
as cinzas quentes de um vago
desejo, e pedir-lhes-á
que as apanhem, para que um
fogo de imagens
os empurre um contra o outro!»
Foi o que a pastora me contou,
com a sua voz enrouquecida pela
noite; e fez-me folhear
as páginas do seu corpo em
busca de um verso esquecido,
como se o pudesse esculpir na
sua pele. Mas as suas mãos
prendiam o tempo, e os seus
olhos abriram-me
o labirinto para onde me
chamou, no convite
impaciente das amadas sem
destino – essas que
deixaram no horizonte sem névoa
o sulco de um reflexo." Nuno Júdice in Navegação de Acaso
“Dizia-te do minuto certo. Do minuto certo do
amor. Dizia-te que queria olhar para os teus olhos e ter a certeza que pensavas
em mim. Que me pensavas por dentro. Que era eu a tua fantasia, o teu banco de
trás. O teu desconforto de calças caídas, de pernas caídas, da rua que não
estava fechada porque nenhuma rua se fecha para o amor.
Na cidade do meu sono, havia
palmeiras onde alguns repetiam putas e charros e atiravam pedras ao rio. Mas eu
nunca gostei de clichés. Nem de quartos de hotel. Nem de camas que não conheço.
Eu nunca abri as pernas, entendes? Nunca abri as pernas no liceu. Nunca abri as
pernas aos dezassete anos, de cigarro na mão. Eu nunca me comovi com o sonho de
ser tua. Eu nunca quis que ficasses, entendes? Que viesses. Queria que
quisesses de mim esse minuto certo, essa rua húmida de ser norte. Queria que me
quisesses certa, exacta, como o minuto onde me pudesses encontrar. Eu nunca
quis de ti uma continuidade, mas um alívio, uma noção de ser gente, entendes?
Eu nunca quis de ti o sonho do sono ou da viagem. Nunca te pedi o
pequeno-almoço, a ternura. Nunca te disse que me abraçasses por trás, que
adormecesses. Eu nunca quis que me desses casa e filhos e lógica. Que me
convidasses para dançar. Queria os teus olhos a fecharem-se comigo por dentro e
tu por dentro de mim.
Queria de ti um minuto. Um
minuto.” Filipa Leal in Egoísta n.º 32
B.
Bonitos. Obrigada e boa primavera, meridiano.
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