segunda-feira, 21 de março de 2016

E Porque é o Dia Mundial da Poesia...

"na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco." José Luís Peixoto in A Criança em Ruínas

 "Limpo de tédio os meus olhos para te receber,
ó primavera, e um dilúvio de miosótis faz-me regressar
à estação das chuvas, ouvindo o correr das águas
numa impaciência de estuário. Lanço a pedra do outono
contra o anjo cego da madrugada, e as suas asas
estendem-se sob as nuvens que desceram até ao campo
onde a pastora se perdeu do rebanho, e me pergunta
o caminho para a última clareira do vale. Sento-me
ao seu lado, sob o freixo antigo, e o vento convalescente
do temporal seca-lhe as lágrimas, enquanto a dispo
da sua túnica de écloga, para que o seu corpo beba
um licor de pétalas adormecidas.
«Nestas encruzilhadas, o amor virá ao vosso
encontro, ó amantes incertos! Trará nas suas mãos
as cinzas quentes de um vago desejo, e pedir-lhes-á
que as apanhem, para que um fogo de imagens
os empurre um contra o outro!» Foi o que a pastora me contou,
com a sua voz enrouquecida pela noite; e fez-me folhear
as páginas do seu corpo em busca de um verso esquecido,
como se o pudesse esculpir na sua pele. Mas as suas mãos
prendiam o tempo, e os seus olhos abriram-me
o labirinto para onde me chamou, no convite
impaciente das amadas sem destino – essas que
deixaram no horizonte sem névoa
o sulco de um reflexo."  Nuno Júdice in Navegação de Acaso

Dizia-te do minuto certo. Do minuto certo do amor. Dizia-te que queria olhar para os teus olhos e ter a certeza que pensavas em mim. Que me pensavas por dentro. Que era eu a tua fantasia, o teu banco de trás. O teu desconforto de calças caídas, de pernas caídas, da rua que não estava fechada porque nenhuma rua se fecha para o amor.
Na cidade do meu sono, havia palmeiras onde alguns repetiam putas e charros e atiravam pedras ao rio. Mas eu nunca gostei de clichés. Nem de quartos de hotel. Nem de camas que não conheço. Eu nunca abri as pernas, entendes? Nunca abri as pernas no liceu. Nunca abri as pernas aos dezassete anos, de cigarro na mão. Eu nunca me comovi com o sonho de ser tua. Eu nunca quis que ficasses, entendes? Que viesses. Queria que quisesses de mim esse minuto certo, essa rua húmida de ser norte. Queria que me quisesses certa, exacta, como o minuto onde me pudesses encontrar. Eu nunca quis de ti uma continuidade, mas um alívio, uma noção de ser gente, entendes? Eu nunca quis de ti o sonho do sono ou da viagem. Nunca te pedi o pequeno-almoço, a ternura. Nunca te disse que me abraçasses por trás, que adormecesses. Eu nunca quis que me desses casa e filhos e lógica. Que me convidasses para dançar. Queria os teus olhos a fecharem-se comigo por dentro e tu por dentro de mim.
Queria de ti um minuto. Um minuto.” Filipa Leal in Egoísta n.º 32


B.

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